A busca desesperada por um chefe

Fábio Cunha
10 min readAug 20, 2020

“-Temos um problema
-Precisamos de um chefe para resolver”

“-As pessoas trabalham de forma individual, não pensam como equipe
-Precisamos de um chefe para dar o comando e mandar elas trabalharem juntas”

“-Sinto que não temos estratégia ou direção
-Precisamos de um chefe que nos diga para onde ir”

“(Subordinado) Precisamos melhorar a organização e comunicação no nosso time.
(Gerente) Vou contratar um outro gerente entre nós para fazer isso. Eu não consigo”

Quem nunca ouviu ou participou de diálogos como esses dentro de empresas?

Eles são muito comuns e testemunhamos isso diariamente, principalmente em empresas onde não existe o papel de um lider local ou este não está próximo (atua em outro país por exemplo), ou quando um líder deixa a empresa e as pessoas precisam fazer com que o trabalho continue sendo entregue e a empresa funcionando até que o novo chefe assuma.

A cultura do trabalho em que estamos habituado, faz com que as pessoas criem a imagem do líder como um ser mítico que vai ter a resposta para todas as perguntas, iniciar todos os projetos parados, fazer a comunicação fluir entre as áreas ensinar as pessoas a trabalhar e colaborar e resolver todos os conflitos.
A expectativa em geral que as pessoas tem de um líder é muito alta e este peso, o peso de ser esse chefe e atender a estas expectativas também é difícil para a pessoa que assume um cargo de liderança.
O chefe também espera que as pessoas obedeçam as suas ordens, que tudo funcione por decreto e não entende porque as pessoas simplesmente não conseguem entender e seguir o que ele diz.
Em uma relação chefe-subordinado, cheia de expectativas não ditas, a frustração de todas as partes é certa.

O que as pessoas buscam não é um gerente, mas sim gerenciamento

Os pedidos descritos nos diálogos acima, não expressam em sua essência o desejo de ter uma pessoa com autoridade para mandar, mas sim expressa uma necessidade, um desejo que o trabalho funcione, que as pessoas se comuniquem, colaborem e tudo isso aconteça de forma estruturada e organizada. O gerenciamento do trabalho é sempre necessário, o gerente nem sempre.

Este gerenciamento não precisa estar nas mãos de uma única pessoa, até porque uma só pessoa não tem todas as habilidades necessárias e raramente é bom em tudo. Quando a estrutura organizacional cria uma limitação onde somente a pessoa com cargo de gerente pode liderar, facilitar e organizar o trabalho, deixamos de usar o poder da inteligência coletiva e as habilidades que as todas pessoas tem a oferecer.
O gerenciamento quando distribuído, com várias pessoas assumindo papéis responsáveis sobre a gestão e organização do trabalho traz benefícios a todos.

O fato é que nunca aprendemos a trabalhar de forma verdadeiramente colaborativa, não aprendemos a distribuir a liderança.Aprendemos desde crianças, começando na escola, que uma figura de autoridade que detem o poder é quem deve organizar o nosso trabalho, deve nos dizer como as coisas vão funcionar e tem o poder de premiação e punição para forçar que as pessoas se comportem de uma determinada forma.
Não desenvolvemos as habilidades de nos relacionarmos como adultos, tomar nossas próprias decisões, organizar como vamos trabalhar juntos e gerenciar nosso conflitos de maneira madura.

Chefes centralizadores e autoritários utlizam da ameaça e estimulam a competição interna. Isto afeta a segurança psicológica dos times, o resultado pode até ser alcançado, porém o custo para as pessoas e para a sustentabilidade da empresa é muito alto. Os profissionais que passam por experiências com chefes assim, tem muita dificuldade em tomar iniciativa e estabalecer acordos de colaboração e confiar em outras pessoas.

Distribuição do poder: Sobre as pessoas ou Com as pessoas?

Uma possível definição de poder é: a habilidade de criar, limitar ou fazer escolhas para si mesmo e para os outros.

A figura do chefe, é associada a poder. O cargo dá a ele poder e tira o poder de seus subordinados.

Nas organizações hierárquicas tradicionais a possibilidade de fazer escolhas esta concentrada nas mãos dos gerentes e diretores. A estrutura organizacional permite que ele exerça o poder SOBRE seus subordinados, decidindo como eles trabalham, o uso de seu tempo, o que podem aprender, quanto vão ganhar, que roupa podem usar, com quem podem falar na empresa, como falar, etc. A lista é extensa e varia de empresa para empresa.

Esta forma de exercer poder, traz as seguintes características:
- O poder é usado contra as pessoas para forçar algo
- Nas decisões sempre há um ganhador e um perdedor
- O poder é um recurso fixo, que está associado a um cargo
- As decisões e ações sempre beneficiam o tomador de decisões ao custo das pessoas afetadas que raramente são ouvidas e consideradas
- A competição por poder destrói a possibilidade de colaboração verdadeira
- Repressão, Coerção, Abuso e Corrupção estão associados a esta forma de liderança centralizada.

Em organizações onde a liderança é distribuída e todos tem autonomia para tomar decisões que impactem diretamente seu trabalho, o poder não é um recurso fixo da empresa associado a um cardo e por isso ninguém é dono dele.
O poder é exercido de forma distribuída. Nem todos precisam ter a mesma autoridade e mesmo nível de autonomia para tomar decisões, mas a estrutura organizacional deixa claro como as decisões são tomadas e considera a participação de todos de forma organizada.

A liderança distribuída tem as seguintes características:
- As relações são ganha x ganha
- O poder de uma pessoa aumenta sem precisar tirar o poder de outras para crescer e expandir sua atuação
- O poder não está associado a cargos
- As decisões tomadas e as ações, fazem pontes entre as necessidades das pessoas
- A distribuição do poder está relacionada com: Colaboração, Equilíbrio, Empatia e Cooperação.

Berne Explica
Se você perguntar para as pessoas, a grande maioria vai dizer que gostaria de trabalhar com mais autonomia. Este item sempre aparece no topo das pesquisas de engajamento no trabalho. Da mesma forma, os gerentes dizem que gostariam de pessoas com mais iniciativa, menos dependentes.

Então porque continuamente, ainda caímos nessa armadilha da relação chefe-subordinada? Existem muitas variáveis, aqui, trago de forma bem superficial uma delas que acredito ter grande influência na perpetuação desta relação.

A Análise Transacional, um método psicológico criado pelo psiquiatra Eric Berne, afirma que a estrutura da personalidade humana é formada por 3 estados de ego: O Pai, O Adulto e a Criança. Todo ser humano, independente do estágio de desenvolvimento possui e se relaciona através destes três estados.

  • Estado de Ego Pai: Conceito aprendido da vida — “O que devo fazer?” Pode ser um pai crítico ou nutridor.
  • Estado de Ego Adulto: Conceito raciocinado da vida — “ O que convém fazer?”
  • Estado de Ego Criança: Conceito sentido de vida — “ O que quero fazer?” Poder uma criança livre, submissa ou rebelde.

As transações entre as pessoas se dão sempre entre estes estados de ego. É um tema muito mais complexo, mas que aqui gostaria de trazer um pequeno recorte, com foco na relação de trabalho.
Relações saudáveis ocorrem quando as transações se dão entre partes do ego adequadas e que se complementam de maneira positiva.

As relações de trabalho deveriam ser na maior parte do tempo relações entre adultos, mas fica claro que quando esta relação se baseia em controlar o outro, em criar dependencia não são os adultos agindo.
Não seria tão problemática se isto fosse claro, mas a relação entre pai e criança é oculta, se esconde em relações aparentemente entre dois adultos.

Na Analise Transacional isso é chamado de relação ulterior, uma transação aparentemente entre adultos oculta uma relação onde o chefe assume o papel do pai e o subordinado o papel da criança.

O pai crítico acredita que tem que controlar a crianças para que as coisas sejam feitas e não tolera erros, as crianças submissas tem medo de errar e acham que não são capazer de fazer sozinhas.

Este diálogo oculto é a fonte das expectativas que os subordinados tem em relação aos chefes, eles buscam um pai que ensine, que castigue, que puna, que aprove, que de carinho, aprovação e os chefes que já trazem em si essa característca do pai crítico entram nesse jogo e se colocam nessa posição superior.

O autoconhecimento é o que nos possibilita sair deste jogos psicológicos e tem papél fundamental na transição para sistemas mais colaborativos. Tanto chefes como subordinados precisam estar dispostos a crescer emocionalmente para atuarem como adultos.

Se não é para ser chefe, qual é o papel que cabe ao líder então?

Acredito que nem todas as organizações vão dar um salto para um modelo totalmente autogerido. Não faz sentido que todos tenham o mesmo poder e em muitas organizações líderes são necessários.
Mas quais papéis esses líderem podem desempenhar, sem assumir o papel de chefe?

O primeiro papel que um lider tradicional pode desempenhar é ser um facilitador de processos colaborativos e autogestão, conduzindo as pessoas nesta transição, ajudando elas a remover obstáculos, mediando a resolução de conflitos, auxiliando as pessoas a tomarem decisões e organizarem o próprio trabalho.

Um segundo papel é o de conselheiro. Processos de aconselhamento são praticas bastante utilizadas em organizações que estão praticando a autogestão. As pessoas antes de tomarem decisões que afetam significativamente outras pessoas podem buscar conselhos e opiniões com aqueles que tem mais experiência no assunto.

Metodologias de autogestão como o O2, Holocracia e Sociocracia, utilizam papéis chamados de “Elos”.
De maneira bem superficial, estas metodologias dividem os times de acordo com o propósito em estruturas chamadas de círculos. Cada círculo tem dois Elos:
- O Elo Interno que é o papel que representa e leva as demandas do círculo para as reuniões de círculo central.
-Elo Externo que é quem traz as demandas da organização para dentro do círculo. Este é o adequado para gerentes durante a a transição.
As responsabilidades normalmente atribuídas ao Elo Externo são:
- Atribuir e convidar pessoas a energizar papéis nos círculos
- Estabelecer as prioridades para as atividades do círculo
- Alinhar objetivos da organização com os do círculo

Diferença do Elo Externo e do Chefe.
- O Elo Externo não contrata ou demite pessoas
- O Elo Externo não microgerencia o trabalho das outras pessoas
- O Elo Externo não tem domínio sobre o tempo das pessoas
- O Elo Externo não obriga as pessoas a energizarem papéis
- Uma pessoa não é exclusivamente um Elo Externo, ele cumpre outros papéis na organização e normalmente não usa mais do que 20% do seu tempo nas atividades de Elo Externo.

Os gerentes podem se basear nestas metodologias e papéis para desenhar o seu estilo e estabelecer os acordos com suas equipes.

Como fazer a transição?

A colaboração verdadeira não acontece por decreto e nem sozinha. As pessoas não resolvem seus conflitos e se autoorganizam se nunca tiveram essa experiência.A pior coisa que pode acontecer a uma equipe é achar que estão trabalhando de forma colaborativa quando na verdade não estão.

Em outros artigos eu descrevi sobre a transição para um novo modelo de organização:

Ativando o poder da liderança distribuída
Proposito Evolutivo e as Organizações

A autogestão não é simplesmente a ausência de chefe.
É um conjunto de processos, rituais e acordos para a tomada de decisões distribuição da autoridade, práticas de colaboração e compartilhamento, formando uma nova estrutura organizacional que não exige que todos tenham o mesmo poder de decisão, mas apenas deixa claro como isso é feito e impede a relação chefe-subordinado.

Para estabalecer estes acordos e práticas entre as pessoas para que a colaboração seja eficiente e o trabalho seja organizado, é necessária a participação de um facilitador que conheça as metologias e ferramentas e ajude as pessoas a iniciarem esta caminhada. No começo pode ser um facilitador externo e o ideal é que durante o processo diversas pessoas da empresa assumam o papel de facilitador.

A transformação não precisa se dar em toda a organização, é possível fazer experimentos de autogestão em alguns departamentos pilotos, experimentando algumas práticas de autonomia e distribuição da autoridade. O importante é que fiquem muito claros os combinados e as fronteiras do experimento.

Para uma transformação de uma organização como um todo, é fundamental e obrigatória que o seu principal líder (Dono, Presidente, CEO) seja o patrocinador e incentivador desta mudança, pois será necessário uma mudança radical nas relações de trabalho e sem este apoio irrestrito é quase impossível ter sucesso devido às interferências hierárquicas (carteiradas).

Porque fazer essa transição?

O mundo corporativo vem passando por uma profunda transformação, se a necessidade de inovação e rápida adaptação às mudanças já era uma tendência, a pandemia tornou isto obrigatório.
Um novo modelo de trabalho que torne as pessoas mais livres, felizes e permita que elas usem todo o seu potencial de forma colaborativa é o que vai proporcionar às empresas esta capacidade de lidar com as mudanças aceleradas.
O trabalho remoto e flexível que veio para ficar deixou claro que chefes que precisam controlar os funcionários vão ter muita dificuldade em se adaptar ao novo mundo, aqueles que tentam fazer isso, não obtem o resultado esperado e estão adoecendo a todos, inclusive a própria organização.

Para as pessoas, a transição para a autogestão pode representar uma evolução pessoal profunda. Neste processo são convidadas a assumir a autoresponsabilidade, sair do papel de codependencia e exercer o seu poder pessoal.
É um processo também de autoconhecimento, onde as sombras que impedem as pessoas de se conectarem, de confiarem e trabalharem juntas ficam aparentes e podem ser trabalhadas.
Todos podem experimentar e expressar suas habilidades de liderança e as lições e habilidades aprendidas neste processo de autoorganização e colaboração poderão ser usadas em qualquer lugar, em novos empreendimentos, para organizar uma ação entre pais na escola de seus filhos e atá para programas as próximas férias de maneira mais aberta e democrática.

Referências

Para quem quiser conhecer um caso bem legal de uma empresa brasileira que fez a transição para a autogestão recomendo assistir a apresentação do caso da CPI Tegus:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=1002&v=Lyb6QGgAKwk&feature=emb_logo

A Target Teal é referência no desenvolvimento de modelos de autogestão. No blog deles tem muitos artigos sobre os principais desafios e soluções nesta transição sempre escancarando as mazelas do modelo atual que a gente finge não ver.
https://targetteal.com/pt/blog/

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Fábio Cunha

Explorador do novo mundo das organizações. Especialista em soluções de comunicação e colaboração. Facilitador de práticas de autogestão.